domingo, 14 de setembro de 2008

Apontamentos

"Crow with heart" - Sarah Rogers

Queria poder saber escrever uma história, e o tema dela seria a espera. Aquela triste espera que parece não depender de nós e que suspende a criança, sentando-a no meio-fio da calçada, tendo como amparo apenas a mão que sustenta o rosto de olhos esvaziados pelo horizonte, naquele morno horizonte onde a sua mãozinha se vê envolvida da grande mão protetora e guia, que lhe veio buscar no fim da tarde. A espera que risca em carvão a sombra que corta o vale, fugindo do sol e abraçando-se com a antagônica noite, perdendo-se onde chegou e esquecendo-se de onde começou a vir. A espera que arrasta-se em estagnação, aprisionando o homem apenas para lhe tornar capaz de procurar, no seu mais íntimo, a semente da loucura que é arada no solo azul do sonho. Não a espera que doa seu corpo à esperança, mas a espera que sutilmente mutila sua surpresa em encanto e, finalmente em desespero. A espera que consiste não em acordar após um longo sono, mas em desenhar no caderno uma manhã, e poder nesta manhã desenhada acordar apenas para compreender que se estava sonhando.

E se nessa história eu pudesse ousar continuar, escreveria então o momento que a chuva é recebida como milagre pelos olhos secos da menina. Quando o sol tinge em laranja as nuvens que se escondiam de teus olhos sonolentos e que anima constelações de orvalhos ao longo do teu quintal. Quando o vento farfalha as folhas e finalmente penteia teus cabelos da forma concebida pela natureza que já não reconheces mais. Quando a mãe beija o recém declarado filho pelo seu ventre e o pai busca a criança suja de tinta na escola. Quando você percebe que todos os temores que nutria no momento que antecedia onde você está no exato agora eram infundados, e percebe que só os pode afogar num sorriso de superação. Quando mesmo os soluços que concluem o choro solitário cessam e dão lugar à clara meditação. Quando a amada recebe uma rosa vermelha jamais recebida - e jamais dada - ou você encontra uma flor amarela caída no chão. Quando eu te encontro por acaso e me deixas apenas entorpecido de surpresa e encanto, reverberando-te em sonho.

E, se pudesse então concluir essa história, nela contaria a você todas essas coisas bonitas que sinto aqui dentro, que me parecem tão claras, despidas de dúvidas, nessa noite perdida que estou irremediavelmente silêncios e mistérios de distância de você. Nessa noite que me banho de uma esperança talvez escorrida da Lua, nesse céu que abraço as possibilidades como certezas, nessas estrelas que, de alguma forma, delineiam teu rosto em minha mão. E você teria a certeza de que tudo o que quis ter feito, era de ter estado ao teu lado, desde o início.

5 comentários:

Dionísio de Oliveira disse...

não desemerecendo os outros posts, mas cara, esse foi o melhor post até agora. parabéns, cara.
relê-lo-ei algumas vezes mais para contemplações mais detidas.

Bruno disse...

Excelente... Sutil e profundo.
Acho que a esperança é aquela luzinha que fica lá, no centro da alma, depois que anoitecemos... Como uma lembrança do dia claro, porém mais que isso: um sinal de que nenhuma noite é eterna.

Bruno disse...

Engraçado que depois de comentar fui à cozinha e o rádio lá tocava: "Uma noite longa, pra uma vida curta (...) eu to na lanterna dos afogados, eu to te esperando,
vê se não vai demorar".
Mas tudo bem, minha mãe estava hidratando sementes de girassol, para que germinem, e ela possa assim fazer o "suco de luz" (só amanhã).

JacqSR disse...

Lindo! Simplesmente lindo...tudo misturado: melancolia e esperança...você construiu as imagens perfeitamente ao longo do texto na minha cabeça...muito bonito mesmo...mandou bem cara!

Pigmaleão Inalado disse...

Fiquei muito lisonjeado com os comentários, embora com um humilde protesto acredite que este escrito esteja, no máximo, acolhido na sombra de muitos outros que brilham ao longo desses meses no blog.

Disse Miguel de Unamuno, um escritor espanhol:
"Sonhar não é esperar".