terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O barco

Olha o barco, meu bem, lá no fundo. Onde? Lá onde a terra há de comê-lo, lá no fim dela, onde começa o sem-fim do mundo. Ainda não posso ver, bem. É que pra isso tens que fechar os olhos assim. Assim? Exato. Agora vês a sombra que projeta na água? Vês a cor ocre de suas madeiras escuras e limosas, ouves suas velas a mastigar o vento e cuspir andanças? E olha as pessoas lá dentro, amor. Suas bocas de esforço, suas cores, suas peles luminosas de sol, seus braços controlando as cordas e o timão, as vontades brancas luzindo as caras, lembranças dum amanhã enternecido adentrando robustos esposas deixadas nas casas, mulheres, lascivas criadoras de filhos chorosos cheirosos a banho. Mulheres, a razão de estarem ali longe, longe delas. Olha, agora recolhem as redes. E o que pescam, querido? Pescam sonhos. Pescam sonhos de mundo, sonhos meus e seus, sonhos de ninguém. Pescam a casa do projeto, o filho que teremos, pescam nuvens, pescam morte. Mas sobretudo pescam mulheres. Sobretudo pescam mulheres.

Um comentário:

Pigmaleão Inalado disse...

Meu amigo, sabendo que não tenho grande vocabulário, a palavra que usarei pra exprimir minha impressão ao ler teu texto decerto já se formou em sólida previsão na tua cabeça, pois que por tantas anteriores vezes fora tomada por mim para semelhante (não equivalente) situação: extraordinário. Gosto dessa palavra, pois denota um para-além; e as conseqüências e proporções que em zumbido e batido-de-asas a partir do jardim do seu texto se grassam, assim o fazem para este além em que não permite o muito dizer, por não ter como dizer, posto que o que havia de ser dito já o foi, no momento de congruência entre o texto e a compreensão em âmbito viscérico (e portanto e indissoluvelmente espiritual) - momento este cujo parto só se pôde dar a partir da precisão e nitidez da neblina marinha das tuas palavras, decantando sal e minério nos pulmões, fazendo boiar punhado de visões de ontem e fermentando mistério no mais-em-baixo. Fado de Acteão, repete-se pois sempre se vice-verseia no (in)consolável sofrer. Encanto de Hécate, faz nascer, ama e clama, e depois - sempre sob lua pontuda - espeta em chamamento de morte. Parabéns.